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quarta-feira, 22 de agosto de 2012
Informação , Compartilhamento, Empoderamento - Vale a pena ler até o final.
Sempre quis entender por que uma mulher prefere passar por uma cirurgia que
exige um corte transversal de 10 a 15 centímetros e atravessa sete camadas
de tecido do que ajudar seu filho a nascer da forma mais natural. Segundo a
Organização Mundial da Saúde, apenas 15% dos partos têm indicação de
cesariana. Mas, no Brasil, oito de cada 10 partos na rede privada são
cirúrgicos. E, assim, os bebês brasileiros cujas mães têm plano de saúde
nascem em horário comercial e o que era natural virou exceção. Por quê? E
para o benefício de quem?
Já ouvi dezenas de vezes a justificativa de que a cesariana “é mais prática,
cômoda e indolor”. Prática, cômoda e indolor para quem? Talvez seja mais
prática, cômoda e indolor para o médico, que não vai ser acordado no meio da
noite nem ter de desmarcar compromissos e consultas para acompanhar um
processo natural durante horas. Mas, para a mulher, os fatos provam que não.
Ainda que o parto natural leve mais tempo, assim que a criança nasce não há
mais dor. Já a recuperação da cesariana pode levar semanas e até meses,
quando tudo dá certo. Sem contar os riscos inerentes a uma cirurgia de
grande porte. Há poucos dias, ao visitar uma amiga que acabou de ter seu
segundo filho por cesariana, ela me disse: “A dor que senti ao tentar
levantar depois da cesárea foi muito maior do que todas as dores do parto
natural do meu primeiro filho. Não entendo como alguém pode achar que isso é
melhor”.
Também já perguntei a alguns obstetras por que fazem tantas cesarianas. E a
resposta de todos foi: “Porque nenhuma das minhas pacientes quer ter parto
natural”. Será? Sempre desconfiei que parte dos médicos não sabe fazer parto
natural. E, além de ser mais prático para eles, escolhem a cesariana porque
também têm medo. Em uma reportagem sobre mortalidade materna publicada na
Época em 2008, o obstetra Nelson Sass, professor da USP, afirmava exatamente
isso: “Os estudantes de Medicina das melhores faculdades quase não têm
contato com parto natural. É uma deformação das escolas. Como os casos mais
complicados são encaminhados aos hospitais universitários e resolvidos com
cesáreas, os alunos não treinam o parto natural”.
Este obstetra, que não foi treinado para o mais fácil e mais natural, vai
convencer aquela gestante que, no caso dela, uma cesariana é a melhor opção.
Quando uma mulher está com um filho na barriga e um médico diz que é
necessário cortá-la para que ele saia, dificilmente ela vai desafiar a
autoridade do médico e contestá-lo. Se o médico diz que é mais seguro, como
ela vai discutir e correr o risco de comprometer a vida do seu filho? Nesses
casos, mesmo mães que desejaram e se prepararam para um parto natural recuam
diante da autoridade daquele que sabe. Mas, às vezes, aquele que sabe só tem
medo. Ou, pior, tem um compromisso social em seguida ou apenas quer ganhar
mais.
Quando uma mulher engravida e a barriga começa a crescer, dá medo, às vezes
até pânico, saber que aquele bebê que está dentro dela vai ter de sair. E é
ela quem vai ajudá-lo nisso. E que esse processo inclui dor. É natural ter
medo. Isso não significa que essa mulher não possa lidar com esse medo e com
todas as fantasias a respeito desse momento e, mesmo assim, viver o que tem
para viver. A maior fantasia – e a que mais atrapalha todas as mulheres – é
justamente a ideia de que a maternidade é sagrada e só envolve bons
sentimentos. Então, para ser uma boa mãe, supostamente uma mulher teria de
achar tudo lindo e elevado.
Poucas crenças são mais perniciosas para as mulheres – e depois para os seus
filhos – do que o mito da maternidade feliz. A escritora francesa Colette
Audry disse uma frase genial sobre o que é um filho: “Uma nova pessoa que
entrou na sua casa sem vir de fora”. Como não ter medo e sentimentos
conflitantes a respeito de algo assim? Engravidar e parir dá medo mesmo. E
uma mulher não vai amar menos aquele bebê por sentir pavor, raiva e
sentimentos supostamente menos nobres – ou supostamente proibidos. Ao
contrário. Ela pode ser uma pessoa pior e uma mãe pior se sufocar esses
sentimentos em vez de aceitá-los e lidar com eles. O que também implica
lidar com o medo da dor do parto e da responsabilidade de ajudar o filho a
nascer. É claro que auxilia bastante encontrar um obstetra responsável que
converse com ela sobre seus sentimentos – em vez de abrir a agenda para
marcar a cesariana.
É por medo de viver e porque ninguém as ajuda a lidar com seus piores
pesadelos que muitas mulheres preferem não sentir – literalmente – um dos
momentos imperdíveis da vida que é o parto de um filho. Acredito que a saída
para esse medo não é ser anestesiada e cortada em data previamente marcada.
E, principalmente, sem necessidade. Como me disse uma grávida um dia:
“Prefiro a cesariana porque aí não tenho de passar por isso. Eu fico ali,
sem sentir nada, e de repente meu filho já está do lado de fora”. Essa
mulher nunca soube o que perdeu, porque perdeu.
Hoje há um movimento forte em defesa do parto natural e há crianças nascendo
em salas humanizadas de hospitais e mesmo dentro de casa nas grandes
cidades, como São Paulo, enquanto lá fora o trânsito para e os carros
buzinam. Existem grupos semanais onde as mulheres e também os homens podem
falar abertamente sobre todos os medos e trocar experiências sobre parto e
amamentação. E poder falar sobre isso e dizer que eventualmente está
apavorada faz bem para todo mundo e também para o bebê que vai ter uma mãe
que consegue falar de seus sentimentos. E falar do que sentimos e do que não
sentimos, por pior que nos pareça sentir o que não queríamos sentir – ou não
sentir o que achamos que deveríamos sentir –, nos ajuda a amar melhor.
Algumas ressalvas, porém. A luta pela volta do parto natural é um bom
combate. Mas é preciso não cair no outro extremo e virar xiita, já que
dogmas não fazem bem à vida. Às vezes percebo com pena esse traço em alguns
movimentos que poderiam ser melhores se deixassem a soberba de lado. A
cesariana é uma ótima saída nos casos em que é indicada e pode salvar a vida
da mãe e do bebê. O problema não é optar por ela quando claramente é a
melhor alternativa diante de uma complicação – e sim fazer a cirurgia sem
necessidade, um comportamento epidêmico no Brasil.
Saiba mais
- *»*Leia outras colunas de Eliane
Brum<http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI63840-15230,00-ARQUIVO+ELIANE+BRUM.html>
Nenhuma mulher é menos mãe ou menos mulher porque não conseguiu ter um parto
natural. Assim como nenhuma mulher é menos mulher porque decidiu que não
quer ser mãe. Já testemunhei mães orgulhosas de seu parto natural esmagar
com sua suposta superioridade uma outra que precisou de cesariana. Este é um
comportamento lamentável, quando não ridículo. Nesses casos, além de ter
sido submetida a uma cirurgia e estar cheia de dores e pontos, a mulher é
punida porque não foi uma superfêmea. Como se ter de fazer uma cesariana
fosse uma nova modalidade de fracasso. Superfêmeas, assim como supermães,
para o bem da humanidade é melhor que não existam. As mulheres mais bacanas
e as que possivelmente serão melhores mães são as que assumem seus medos e
não punem o medo das outras. E compreendem que na vida, assim como no parto,
a gente tenta fazer o melhor possível. E o melhor possível tem de ser o
suficiente.
Para nos ajudar a pensar sobre tudo isso, entrevistei uma amiga que teve seu
primeiro filho há uns poucos meses, perto dos 40 anos. Eu a escolhi porque
ela desejou muito um parto natural. E se preparou muito para o nascimento do
seu filho. E conseguiu o seu parto. Mas, para isso, passou por um tremendo
estresse desnecessário em seu embate com a cultura predominante da cesariana
e o medo de que os profissionais escolhessem por ela ao longo do trabalho de
parto.
Quando fui visitá-la no hospital, no dia seguinte ao nascimento do bebê, ela
tinha necessidade de contar sobre o pavor vivido não por causa das dores do
parto, mas pelo medo de que roubassem dela esse momento. Seu bebê era
saudável, ela ajudava a dar nele o primeiro banho e amamentava-o sem nenhum
incômodo. Mas o embate com a equipe de saúde a tinha marcado. E teria sido
melhor se ela tivesse a certeza de que sua decisão seria respeitada – e uma
cesariana só seria feita se realmente houvesse necessidade.
Há cerca de um ano ela deu outra entrevista para esta coluna, sobre seu
desejo e suas dificuldades de engravidar, e os mitos de fertilidade que
atrapalham a vida das mulheres. Agora, ela nos conta o capítulo seguinte. A
experiência de cada mulher é única. Esta é a da minha amiga. Nem certa nem
errada, nem melhor nem pior, apenas a dela.
ÉPOCA *– Você queria muito ter parto natural. Por quê?
*Me parecia uma experiência mais completa do que uma cesariana, mais natural
e menos passiva. Queria fazer força, ajudar meu filho a vir ao mundo. Não
queria alguém tirando ele com um bisturi sem que eu visse, por trás de uma
cortininha hospitalar, em 10, 15 minutos. A cena tinha de ser maior, mais
demorada e curtida. Me via puxando/empurrando meu filho pra vida. A gente
tomava fôlego de vez em quando e ele continuava a sair. Algo pra se ir
absorvendo aos poucos. Ao longo da gravidez, também fui construindo em mim a
ideia de que um parto normal seria algo mais meu, sobre o qual eu teria mais
controle do que uma cirurgia. Eu faria o parto – não o médico.
ÉPOCA *– - Este desejo, que é natural, afinal é assim que as crianças nascem
ou deveriam nascer quando não há nenhuma complicação, acabou sendo difícil
de botar em prática, porque toda a cultura ao redor empurrava você para uma
cesariana. E isso deu a você uma carga extra de tensão. Como foi?
*- Eu tive de fazer uma verdadeira maratona para conseguir meu parto. Sabia
que as cesarianas eram regra, mas não que era tanto assim. Os médicos te
dizem: "Vamos tentar um parto normal", como se fosse o mais difícil, como se
exigisse condições. Ora, o "normal" não é ser normal e a cirurgia só
acontecer se algo der errado? O fato é que eu tive de convencer, barganhar,
ameaçar trocar de médico para conseguir que fosse normal. Percebi que
precisaria me informar horrores, me apropriar do processo, para que quando
chegasse o momento ninguém pudesse me enrolar com desculpas como as que eu
ouvia de amigas justificando cesáreas. E nesta viagem eu aprendi muitas
coisas sobre parto. Tantas que teria sido capaz de fazer o meu sozinha.
Descobri que bastava amparar meu filho na saída e secá-lo. Não existe nenhum
procedimento imprescindível nem durante o parto, nem no nascimento - quando
tudo está bem, é claro. Não deixa de ser um absurdo ter de descobrir como
funciona algo tão ancestral e natural como um parto. Este processo parece
que foi transformado em um mistério pela medicina moderna – um mistério até
para as mulheres.
ÉPOCA *– - Por que você acha que a medicina tornou o parto um mistério? E
por que você acha que as mulheres preferem cesarianas? Do que elas têm tanto
medo, afinal?
*Primeiro, por falta de informação. Os médicos dão pouca informação. Chegam
a perguntar o que a mulher prefere, em vez de irem direto para o normal e
partirem para a cesárea apenas quando necessário. Já ouvi de um médico que
cesariana era mais “prático”. O ponto de partida é que já está errado. Se os
médicos não esclarecem, as possibilidades de parto normal já ficam
reduzidas. Por exemplo, o parto normal dói, mas tem a opção da anestesia no
momento em que a paciente quiser, embora o ideal seja mais para o final.
Acho que se as mulheres conhecessem melhor o processo, optariam menos por
cesarianas. Há vários mitos envolvidos. Acho que algumas mulheres consideram
o parto normal algo pouco civilizado, pouco moderno. Muitas têm medo de
ficar com a vagina alargada depois que passar um bebê. Tem também a questão
da falsa praticidade, de poder marcar o parto. Digo falsa porque não é nada
prático ficar com pontos na barriga de uma cirurgia considerada de porte,
fora o risco de ter um bebê nascido antes do tempo, antes de ficar pronto.
Há mulheres que querem acabar logo com o processo do nascimento, como se ele
não pudesse ser demorado e maravilhoso, sentido, como se esta demora não
tivesse também as suas delícias. É como sexo: você sua, se esforça, quanto
mais demora, melhor. Não combina ser asséptico, rápido, cirúrgico. O parto
também não. Mas acho que o que mais pega é o medo da dor. Nosso mundo tem
medo da dor. Mesmo a inevitável, a necessária, a que ajuda a trazer um filho
pra vida. A dor de parto não é como outras dores. Não é como uma dor de
ouvido, por exemplo. Ela vem aos poucos, para que a mulher se recupere nos
intervalos. É forte, mas é uma dor de vida, não de morte. Vai trazer uma
coisa boa. Isso te ajuda a suportar. Se não, tem a possibilidade de
analgesia. Prefiro dizer que não são dores de parto, mas contrações,
movimentos.
ÉPOCA *– - O que você aprendeu em sua busca de conhecimento, quase se
armando para que não roubassem de você um dos grandes momentos da sua vida?
*No fim, aprendi que havia vários tipos de parto normal - natural, normal,
induzido, humanizado... E percebi que eu não queria apenas um parto
"vaginal". Queria um parto com o mínimo de intervenções, o mais natural
possível. Nos últimos anos (ou décadas) foram estabelecidas tantas
intervenções como rotina que, na maioria dos partos normais urbanos, de
classe média, você toma uma superanestesia e fica inepta pra ajudar seu
filho a nascer. Então tem de tomar hormônio pra estimular as contrações
reduzidas pela anestesia. Na hora H alguém empurra sua barriga com uma
manobra horripilante e desnecessária para que o bebê saia. E, no fim, quase
que obrigatoriamente, cortam a entrada da sua vagina para ajudar o bebê a
sair, mesmo que não precise. Eu não queria nada disso. Queria um parto meu,
comandado pelo poder de dar à luz que a natureza me deu, apenas assistido
pelos profissionais de saúde.
ÉPOCA *– Em sua incursão pelo mundo da militância do parto natural, você
participou de grupos e ouviu histórias de todo tipo. Quais foram essas
narrativas e como elas ajudaram a construir a sua?
*Eu tinha guardado na memória o relato especial de uma amiga que teve a
filha ainda adolescente no hospital, mas sem anestesia, sentindo as dores do
parto. Era minha história inspiradora de nascimento. Descobri na internet um
grupo para grávidas, o Gama (Grupo de Apoio à Maternidade Ativa), para
ajudar as mulheres a ter experiências assim. Frequentei esse grupo
semanalmente com meu marido. Lá ouvi outros relatos de partos naturais, ou
seja, sem anestesia nem intervenções, muitos ocorridos em casa. Quase todo
dia tinha uma história incrível de uma mulher que tinha dado à luz deitada
em sua própria cama, usando os lençóis guardados no armário, comovendo os
vizinhos com o choro de bebê novo que de repente interrompia os gemidos do
parto como se estivessem todos num século remoto, muitas vezes
escandalizando a família com sua escolha "precária". Não me lembro de um
relato exato porque eles se pareciam muito, mas de detalhes misturados de
nascimentos em apartamentos apertados no caos de São Paulo. Um casal contou
que teve o filho num cômodo sem janela, na parede apenas o quadro pintado
por um amigo imitava a paisagem de fora. Que loucura alguém parir sem
janela, pensei. Eu adorava esses detalhes curiosos e muito humanos. Teve o
marido assustado que se refugiou na cozinha para fazer comida enquanto a
mulher se contorcia pra dar à luz no quarto, como se nada de extraordinário
estivesse acontecendo na casa enquanto ele cozinhava. Teve a história da
mulher que berrou no meio de uma contração para o marido não entregar pra
parteira as toalhas de banho brancas, e sim as estampadas, se não estragaria
o enxoval dela. Teve o caso de uma que ficou muito brava com o companheiro
porque ele ficava contando os intervalos das contrações e isso a deixava
nervosa. Ela pedia que ele parasse e ele continuava contando. Teve a que
achou que tinha defecado no parto, mas era só a placenta saindo depois do
bebê. E teve uma que de fato defecou. Nunca tinha imaginado que coisas assim
pudessem acontecer. Além dessas histórias do grupo, fui também buscar
histórias mais próximas. Uma amiga contou que teve o bebê quase no saguão do
hospital, antes de a médica chegar, porque o marido não acreditou que o
trabalho de parto estivesse tão avançado. A filha nasceu enquanto ele
estacionava. Essa história me fez pensar que eu deveria conhecer bem os
estágios do parto, para o caso de uma emergência. Outra me contou como se
sentiu traída ao final de um trabalho de parto normal e tranquilo, quando o
anestesista a agulhou pelas costas sem que ela quisesse, apenas para
justificar sua ida ao hospital numa antevéspera de ano novo. E de como ela
se sentiu dolorida nos dias seguintes por causa da peridural e da traição.
Me fez pensar em como era importante eu deixar claro meus desejos e manter
em minhas mãos o comando da situação. E também a importância de deixar claro
para o meu marido o que eu queria – e não queria. Ouvi também um relato
triste da minha irmã, que sempre quis parto normal e acabou levada a uma
cesárea que ela acreditava desnecessária. Ela não viu os filhos saírem, não
sentiu nada. E quando fui resgatar essa história, senti como isso tinha
deixado nela uma ferida aberta. Uma ferida que eu não queria aberta em mim.
Fui escutando essas histórias para ver como era, saber o que eu queria, o
que eu não queria, e para tentar aceitar o que talvez estivesse além do meu
querer.
ÉPOCA *– Quando seu filho nasceu, você disse que ficou muito tensa durante o
processo porque a todo momento tinha medo de que os médicos pudessem dar uma
anestesia, fazer algum procedimento ou mesmo uma cesariana contra a sua
vontade. Como foi isso?
*Ao longo da gravidez, fui decidindo o que eu queria e o que não queria pra
mim e para o bebê. Coisas muito importantes, pelas quais eu e meu marido
faríamos todo o possível, e outras que nos importaríamos menos se escapassem
do planejado. Meu maior terror era passar por uma cesariana. Ainda mais se
fosse desnecessária. Não sei em que pedaço de mim isso pegava, mas pegava.
Nas últimas semanas, minha obstetra falou: "Querida, se rolar cesariana
serão dez anos de terapia pra você, não é?". Eu disse: "Exatamente. Você
entendeu o tamanho da coisa".
ÉPOCA *– Por que tanto horror à cesariana? Embora exista um abuso de
cesarianas no Brasil, boa parte delas desnecessária, há casos em que pode
ser a melhor escolha e mesmo fundamental para salvar a vida da mãe e do
bebê. Se fosse este o caso, não estaria tudo bem para você?
*Acho que se fosse o último recurso, tudo bem. Mas eu gostaria de ter
certeza de que era realmente necessário e não uma conveniência ou
inabilidade do médico, coisa que ficou muito difícil identificar hoje em
dia. Acho que eu também mitifiquei o parto normal. Eu nasci de cesárea. E
estou aqui, viva, sem traumas. Não tenho problemas com isso. Mas era um
desejo meu ter o filho naturalmente. Só aceitaria a cesárea se tivesse muita
clareza da necessidade.
ÉPOCA *– Então conta como foi seu processo nessa luta com os profissionais
de saúde ao longo do trabalho de parto...
*Meu trabalhou de parto ativo durou 13 horas. Isso é considerado normal, mas
as pessoas se assustam. Muitos médicos se assustam, inclusive. Meu pavor,
quando eu via o relógio andando depressa demais, era que eles se cansassem e
dissessem: "Bom, vai ter de ser cesárea". E me empurrassem uma desculpa
qualquer goela abaixo, com o poder da autoridade deles. Eu cheguei ao
hospital com contrações fortes e ritmadas, num bom intervalo. Mas a
dilatação era frustrantemente pequena ainda. Meu filho estava com a cabeça
defletida, ou seja, virada pra cima, mirando o céu, então não descia. E
minha vagina tinha uma reborda, uma espécie de dobra que se forma muitas
vezes e também dificulta a saída. Eu sabia que nenhuma das duas coisas era
motivo para cesárea, mas podiam tentar usá-las para fazer uma. Eu tinha
chamado uma doula, uma acompanhante de parto, que na hora me ajudou com
exercícios, posições e apoio emocional. Mas, depois de oito horas, acabei
pedindo uma analgesia porque não aguentei a dor, estava dobrada, apagando
nos intervalos das contrações. Tive medo que isso animasse os médicos a
fazer cesárea, afinal, eu já estava anestesiada, ainda que de leve. Chorei
muito porque não imaginava que a dor fosse maior do que eu. E chorei de
medo. Lá pelas tantas entrou uma obstetra na sala e começou a conversar com
minha médica. Ela dizia que o parto que ela fazia na sala ao lado estava
demorando muito então ia virar uma cesárea porque ela já estava cansada.
Entrei em pânico e comentei com a doula que não queria que todos se
cansassem daquele momento meu e quisessem ir embora inventando uma cesárea.
Minha médica ouviu e disse: "Temos todo o tempo do mundo para esperar". Era
verdade. Ela começou a me pedir pra fazer certas posições, me virava na
cama, com muita delicadeza, até que o bebê se acertou e começou a sair.
Nessa hora, de novo entrei em pânico, fiquei selvagem porque começaram a
montar uma mesa de instrumentos e eu temi de novo uma cesárea. Pra que tudo
aquilo? A pediatra, acostumada com partos humanizados, naturais, me disse
que era normal, uma prevenção em caso de ocorrer uma emergência. Mas a cada
barulhinho de metais mexendo eu gritava, perguntando o que iam fazer.
Felizmente, o que fizeram foi apenas esperar meu filho sair, naturalmente,
sem cortes, inteiros nós dois.
ÉPOCA *– Qual foi o sentimento quando seu filho nasceu?
*Eu parecia um bicho. Estava meio agressiva, assustada e ao mesmo tempo me
sentindo a dona da cena. Queimava tudo quando ele estava saindo. Parecia que
as tripas iam sair por baixo, apesar da analgesia, que era leve justamente
pra eu sentir. Daí ele saiu, roxinho, com o cordão enrolado no pescoço e na
mão, sem nenhum problema. Veja que os cesaristas adoram dizer que isso é
motivo pra cortar uma mulher. Alguém que estava perto da vagina esticou os
braços me entregando aquele pacotinho. Me escapou um: "O que eu faço com
isso?". Mas imediatamente eu soube e puxei ele pra mim, pro meu peito. Veio
a pediatra e ajeitou-o pra mamar. E ele mamou. Eu chorava, chorava. Chorava
e sorria. Parecia que não existia nada além dali. Que o momento era aquele.
Que a vida começava e terminava naquela sala. Que ali dentro estava tudo que
me importava. Senti orgulho de mim, do meu filho. Me senti poderosa, cheia
de muita coisa boa. Talvez algumas mulheres se assustem com a intensidade de
dor e de medo no relato do parto do meu filho e achem que não vale a pena.
Primeiro, eu acredito que as coisas importantes não são necessariamente
leves e indolores. Nem que as coisas boas só são boas se forem leves,
rápidas e indolores. Meu parto foi forte. Em alguns momentos foi tenso e
doloroso. Em alguns momentos tive medo. E, mesmo assim, foi uma delícia.
Mesmo assim, tive um prazer indescritível. Tudo junto, como a vida é. Não
trocaria isso por nada. Poucas vezes me senti tão viva. Poucas vezes estive
tão viva. E completa.
ÉPOCA *– Como é ser mãe? Fico observando você e percebo que, embora existam
as angústias, e elas são muitas nesse início da vida de um filho, você
parece estar sempre numa espécie de estado de completude. Volta e meia olha
para o seu filho e chora de alegria...
*Eu estou em estado de graça desde o momento em que meu filho nasceu. Eu
tinha um medo, que para algumas pessoas pode parecer idiota, de ter um filho
feio e burro. Bem, ele é lindíssimo. Meu bebê nasceu lindíssimo, como eu
jamais poderia imaginar que seria. Tem orelhas perfeitas, nariz lindo. Ele é
todo bonito. Tudo nele é bom. Senti algo indescritível quando saí da
maternidade com ele nos braços, apresentando a rua lá fora, o sol, os
carros, o barulho, as pessoas, a vida. Me senti a pessoa mais importante do
mundo. Chorei quase todos os dias do primeiro mês de vida dele. De alegria,
de plenitude. Chorei de ver que era tudo verdade, que ele estava ali. E
ainda choro. A maternidade está além da minha maior expectativa.
ÉPOCA *– Me parece, pela minha própria experiência e pela de outras mulheres
que escuto por aí, que o afeto e o amor pelo filho não é algo dado, mas
construído. De repente, há uma pessoinha nova fora da gente, na casa da
gente, exigindo coisas com o seu choro. Mesmo que a gente a carregue por
nove meses, fora do nosso corpo é outra história. Me parece que amamos aos
poucos, num afeto que vai se construindo e se fortalecendo ao longo dos
dias, até se tornar a ligação mais forte e profunda da nossa vida. E não
como um amor que vem do além e cai como um raio na hora em que o bebê nasce,
como somos ensinadas a acreditar que é o certo. Como foi para você?
*É interessante porque, embora a maternidade seja atávica, o afeto não é
automático, imediato. Eu não senti assim, pelo menos. Fui me apaixonando
pelo meu filho. É algo que é construído da rotina com o bebê, que é uma das
coisas mais intensas que alguém pode viver. Um dia aparece um serzinho
estranho de dentro de você para você cuidar. Invade seu mundo, sua vida, com
um cheiro novo, barulhos novos, hábitos novos. Surge um novo prolongamento
de você, algo que não existia antes e que precisa de você para existir. No
começo é ternura, curiosidade, encantamento. Acho que a natureza faz bebês
fofos para a gente se encantar e cuidar deles. Aos poucos vai virando amor,
delícia, intimidade. Você ama "aquele" bebê. Eu comecei a ficar mais mãe aos
poucos. E acho que vou ser cada vez mais mãe, conforme o tempo passar.
ÉPOCA *– - Um de seus conflitos é a aproximação do momento de voltar ao
trabalho, depois da licença-maternidade. Por um lado você tem vontade de
largar seu emprego e virar mãe em tempo integral. Por outro, tem sonhos de
que está trabalhando em grandes projetos. Não é fácil ser mulher, não é?
Como você está se virando?
*Não gosto nem de imaginar a volta ao trabalho. Parece que ele vai precisar
de mim e não vou estar. Dizem que quem mais sente a dor dessa primeira
separação é a mãe. Eu não consigo imaginar meu filho desamparado. Uma neura
de que não cuidarão tão bem dele, de que eu não estarei lá vendo cada
sorriso ou respiro. Acho que ainda sinto que ele é um pedaço de mim que
ficaria pra trás algumas horas, doendo. Tenho um trabalho flexível, que me
permitiria estar com ele em vários intervalos do dia. Ao mesmo tempo, já fiz
as contas pra ver quanto tempo eu poderia ficar em casa só acompanhando ele
crescer, mudar. Provavelmente, voltarei a trabalhar. Acho que ficaria tensa
de não ter segurança financeira e talvez me cansasse, com o tempo, de ficar
apenas em casa. Afinal, é uma rotina desgastante. Meu plano ideal seria que
me dessem uma licença de um ano ou que meu emprego me liberasse e estivesse
lá quando eu voltasse. Pra mim, seria o tempo ideal pra eu me dedicar ao meu
filho, curtir cada minutinho, cheirar ele o dia inteiro. É importante
trabalhar, mas é melhor ser mãe, ao menos nesse momento. Acho que o modo
como as coisas são estruturadas no nosso mundo, no nosso universo
brasileiro, não facilita muito a vivência dessas coisas. Poderíamos ter a
opção de voltar logo ou não ao trabalho. Eu queria muito ficar mais. Mas dá
medo chutar tudo e viver de economias. Eu não gosto de pensar nisso. Me
incomoda, estraga meu dia. Meu filho fez parar meu tempo. Mas as coisas fora
de nós não pararam. Não sei como resolver.
ÉPOCA *– Quais são as alegrias e os conflitos desse momento muito particular
que você está vivendo?
*As alegrias são todas. O sorriso dele quando acorda, as dobrinhas, o cocô
sem cheiro. Os gemidos, o choro, o beicinho, a respiração, o espirro. Mas a
maior felicidade é ele mamar no meu peito. Ele se alimentar de mim. Isso é
uma loucura. E eu me alimento de olhar ele mamando, toda torta, querendo
chorar de alegria. A mãozinha no meu peito. Algo indescritível. Não tenho
muito tempo pra mim, o que me angustia, mas só um pouquinho. Me sinto
bonita, forte, poderosa, e tenho conseguido administrar as dificuldades
porque tenho uma boa rede de apoio – marido superparticipativo, empregada,
família, grana. Talvez eu não seja a melhor referência, porque a maternidade
nem sempre é fácil. E pra mim está sendo uma delícia. Meu maior conflito é
querer às vezes ficar só eu, meu filho e o pai dele juntos, feito bichos,
num ninho, nos lambendo. Mas o planeta não é vazio como eu queria que fosse
agora. O que também tem um lado bom: muita gente pra eu mostrar a coisa mais
linda que eu já vi.
ÉPOCA *– Hoje, olhando para trás, o que o parto natural deu a você?
*O meu não foi 100% natural porque eu tomei analgesia. Meu parto normal me
deu a maior lembrança da minha vida. Uma longa cena que me mudou
completamente. Me sinto uma mulher completa agora. Me sinto uma mulher
feita. Acho que, por ter sido um parto normal, me sinto mais do que se fosse
de outra forma.
ÉPOCA *– Você tem medo do futuro? De seu filho estar aqui, de ter de
educá-lo com um mundo inóspito lá fora...
*Tenho todos os medos, os mais absurdos. De ele sofrer, de não ser feliz.
Medos que eu sempre tive da vida, como todo mundo. Mas meus olhos estão tão
cheios da visão linda do meu filho e meu coração transborda de uma alegria
tão grande que não cabe mais nada. Essas visões ruins de futuro se apagam
rapidamente. Uma ternura louca espanta os medos, tão logo eles chegam. E me
enche de esperança a idéia de criar um ser humano lindo e feliz. De
apresentá-lo ao mundo e o mundo a ele.
ÉPOCA *– O que é ser mãe, afinal?
*Para mim, ser mãe é me sentir completamente mulher, fêmea, em todas as
possibilidades. Já li que não é a maternidade que te faz uma mulher. Mas há
uma dimensão que a gente só conhece sendo mãe. É mais para sentir do que
explicar. Me sinto maior do que eu era antes. Bem maior.
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